AUTONOMIA: UM MODELO EXPLICATIVO DA ONTOLOGIA DA UNIVERSIDADE
GT: Política de Educação Superior
ANDRADE, Luiz Antônio Botelho- UFF
LONGO, Waldimir Pirró- UFF
PASSOS, Eduardo- UFF
Fonte: http://23reuniao.anped.org.br/textos/1107T.PDF
Etimologicamente autonomia significa lei própria (do grego ampo = próprio; homia
= lei). Segundo o Dicionário Aurélio, autonomia significa: (a) faculdade de se governar por
si mesmo; (b) direito ou faculdade de se reger por leis próprias e (c) liberdade ou
independência moral ou intelectual. O seu antônimo, heteronomia ou alonomia, significa lei
externa ou comando, isto é, condição de pessoa ou de grupo que receba de um elemento
que lhe é exterior, a lei a que se deve obedecer. O objetivo deste ensaio é pensar a
autonomia no âmbito das instituições, com ênfase na Universidade. Nesta perspectiva, os
conceitos de autonomia e heteronomia definem tipos diferentes de organização de sistemas.
O primeiro define sistemas auto-referenciais, de afirmação de si, isto é, sistemas que se
determinam a partir da sua própria dinâmica de funcionamento. O segundo define sistemas
de entrada e saída (in put, out put), cuja identidade é afirmada pelo outro, portanto, sistemas
de definição a partir do exterior (Varela, 1989).
Assim, pensar a autonomia universitária implica, num primeiro momento, responder
a uma questão fundamental: a universidade pode ser entendida como um sistema?
Antes de discutir esta questão, é importante que definamos de onde falamos quando a
propomos. Pois se, por um lado, somos parte integrante da Universidade como um
elemento de sua dinâmica, por outro lado, acreditamos que podemos assumir, frente à
Universidade, uma posição de observador que analisa as regularidades e criações da sua
dinâmica. Nesse sentido, vale ressaltar o alerta que Humberto Maturana, neurobiólogo
chileno, nos faz sobre o observador no seu ato de fazer distinções:
“tudo que é dito é dito por um observador a outro observador, que pode ser
ele mesmo. Um observador é um ser humano que pode fazer distinções e especificar
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o que ele distingue como uma unidade, como uma entidade diferente dele mesmo.
Um observador pode fazer distinções em atos e pensamentos, recursivamente, e é
capaz de operar como se fosse externo (distinto) à circunstância na qual ele se
encontra. Cada vez que fazemos referência a algo, explícita ou implicitamente,
estamos especificando um critério de distinção que indica aquilo de que falamos e
especifica suas propriedades como ente, objeto, unidade ou sistema. Todas as
distinções sustentadas, conceitualmente ou concretamente, são feitas por nós,
enquanto observadores” (Maturana, 1997a)
Dito isto, retornamos à questão fundamental, com seus respectivos desdobramentos:
a universidade pode ser entendida como um sistema? Que tipo de sistema? As
universidades, em seu conjunto, poderiam também ser concebidas como um sistema mais
amplo?
Embora muitos autores se refiram à universidade e ao conjunto das universidades
como sistema (Schwartzman, 1981; Durham, 1993; Santos, 1999), poucos1 justificam esta
terminologia em seus ensaios. Fazer tal referência, portanto, nos coloca um grande desafio:
argumentar em favor de tal opção sem incorrer no risco de nos tornarmos reducionistas.
Isto porque “sistema” é um conceito amplo, de aspectos variáveis, sempre carregado de
valor, quer positivos, quer negativos, seja quando designa um estado de conhecimento seja
quando designa um objeto (Prigogine e Stenger, 1993)
Para Maturana, 1997, sistema é qualquer coleção de elementos que, através de suas
interações preferenciais, estabelece para si uma fronteira operacional, separando-o de
outros elementos com os quais também pode interagir e que, então, constituem o meio no
qual tal coleção de elementos opera como uma totalidade.
1 Dermeval Saviani faz uma ampla discussão sobre as noções de estrutura e sistema no campo
educacional brasileiro, tomando como referência o discurso político e os documentos legais que
permearam o estabelecimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Uma das
conclusões do autor é que, afora um sistema administrativo, não existe sistema educacional
brasileiro, explicando assim a importação de modelos, a falta de integração das ações
governamentais. Para ele, a grande tarefa dos educadores brasileiros é a de produzir, “numa
perspectiva radical, rigorosa e de conjunto”, uma Teoria da Educação Brasileira. Tendo em vista
que o livro de Saviani, intitulado “Educação Brasileira: Estrutura e Sistema” foi publicado em 1981,
quando o debate político sobre autonomia universitária ainda não estava sendo colocado, esta
questão não foi abordada pelo autor.
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A noção de totalidade ou holismo (do inglês: whole ou todo) nos remete, de novo,
ao observador e ao seu ato de observar e fazer distinções, pois existem diferentes maneiras
de cortar o mundo em todos ou em totalidades. Como uma totalidade, um sistema não
existe por si próprio: ele existe na medida em que o observador especifica uma fronteira e,
ao especificá-la, o sistema emerge, ressaltando-se de um meio. Se aceitarmos que a
universidade pode ser concebida como um sistema, qual é o meio em que ela opera? Seu
meio seria a cidade? O país? O planeta? A sociedade ? As Corporações estratégicas? Ou
todos esses contextos, tomados isoladamente ou vinculados? As reflexões sobre estas
questões e as suas implicações políticas serão o fio condutor deste ensaio.
Tratar a universidade como um sistema significa encontrar-se perante problemas
que, embora diferentes, mantém uma relação com aqueles colocados pela Biologia do
Conhecimento (Maturana, 1970; Maturana e Varela, 1972) . Duas noções, organização e
estrutura, tal como definidas por Maturana e Varela (1972; 1995), dizem respeito a todos
os sistemas. Conceituando-as, poderemos cruzar as fronteiras disciplinares para melhor
refletirmos sobre o nosso objeto de estudo.
Antes de apresentarmos o que entendemos por organização e estrutura, gostaríamos
de fazer dois alertas: um sobre a confusão de domínios de descrição e outro sobre a
utilização indiscriminada destes dois conceitos para uma mesma categoria.
O primeiro alerta nos é feito por Maturana (1997a) quando nos ensina que,
enquanto observadores, freqüentemente fazemos uma confusão de domínios de descrição.
Confundimos o que é inerente ao sistema, seus componentes, sua estrutura e sua
organização, com o que ocorre com o sistema (como um todo) em sua interação com o
meio. Assim, quando descrevemos o sistema universidade em termos das relações entre
seus componentes, estamos falando de um sistema que existe em um espaço definido por
seus componentes, e é próprio falarmos de sua estrutura e da sua organização. Enquanto
observadores, um outro corte pode ser feito fazendo emergir do meio um outro sistema, tal
como, por exemplo, a totalidade das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) ou
mesmo a totalidade das instituições de ensino superior do país (IES). Neste último caso,
estaríamos nos referindo ao Sistema Nacional de Educação Superior, no qual uma
determinada universidade seria agora um componente. A última parte de nosso ensaio
conterá algumas proposições deste segundo recorte.
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O segundo alerta é que os conceitos de organização e estrutura que utilizamos neste
ensaio, advieram da Biologia do Conhecimento, proposta por Maturana e Varela (1972), e
que reconhecemos que estes conceitos são utilizados indistintamente pelo senso comum ou
de formas distintas, dependendo do campo de saber.
Por organização entende-se o conjunto das relações entre os elementos constitutivos
de uma unidade composta ou sistema que se mantém invariante ao longo de uma deriva
temporal, ou seja, é a organização que confere a um conjunto de elementos a sua unidade
de classe. O conceito de estrutura, por outro lado, diz respeito ao conjunto de relações
efetivas entre os componentes presentes em um sistema concreto determinado espacial e
temporalmente (Maturana,1997; Varela, 1995; Zeleny, 1981). Assim, uma mesma
organização pode ser efetivada por diferentes estruturas. Por fim, deve-se acrescentar que
um sistema pode existir em um meio, aberto para interações recíprocas e suscetíveis de
mudanças estruturais, desde que sua organização seja mantida. É nesse sentido que
podemos dizer que a organização universitária, em seu acoplamento com o meio, vem se
realizando com estruturas diferentes há, pelo menos, nove séculos.
Nesta perspectiva, avançaremos com nossa argumentação descrevendo a
universidade como um sistema autônomo. Assim, nos perguntamos primeiramente: que
tipo de rede de interações pode ser identificada dentro da Universidade que, no seu operar,
nos permitiria circunscrevê-la por uma fronteira? Qual é a estrutura e a organização da
universidade que, na sua operacionalidade, especifica o que distinguimos como interior e
exterior (meio)? Esta passagem é delicada. Primeiro, porque o tipo de rede de interações
que caracteriza o sistema Universidade advém das relações interpessoais e está, portanto,
duplamente, no domínio da linguagem. Está no domínio da linguagem porque: (1) se toda
distinção é feita pelo observador e esta só pode ser feita através da linguagem logo, quando
distinguimos a universidade como um sistema, o fazemos enquanto observadores, isto é, na
linguagem (primeira recursão); (2) retorna-se de novo ao domínio da linguagem quando
afirmamos, em nossas distinções, que o tipo de rede que caracteriza a universidade é uma
rede de conversação, ou seja, uma rede lingüística. Os prédios, as bibliotecas, os
laboratórios e a infra-estrutura participam como elementos que materializam ou que
facilitam aquilo que estamos afirmando como essencial: as relações interpessoais - estas
mantidas por um tipo especial de rede de conversações, que especificaremos logo a seguir.
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Fica aqui entendido o que disse o ex-Reitor da Universidade de Campinas, Zeferino Vaz,
quando afirmou que uma universidade se faz primeiramente com gente, depois gente e
gente, só depois vindo os prédios, as bibliotecas e a infra-estrutura em geral. O problema
então pode ser assim explicitado: se tudo o que é dito é dito por um observador, na
linguagem, como diferenciar o sistema universidade dos outros sistemas que, eles mesmos,
também só podem ser distinguidos na linguagem?
Mas se estamos falando de linguagem, estamos falando de cultura. Para Maturana
(1997, p. 177), uma cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver, um
modo de estar orientado no existir, um modo de crescer no atuar e no emocionar. Crescese
numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de
conversações que a define. Seguindo esta definição de cultura, poderíamos conceber a
universidade como um tipo de sistema ou sub-sistema, dependendo do corte feito pelo
observador, cuja organização é definida pelas relações e conversações interpessoais
características do modo de viver na universidade. A estrutura deste sistema, ou subsistema,
seria uma das muitas atualizações possíveis deste tipo de organização. No caso de uma
universidade, em particular, sua estrutura se identificaria com as relações efetivas
existentes entre os seus membros reais. É por isso que a organização de um sistema é
necessariamente invariante, enquanto a estrutura pode variar. Se há uma mudança de
organização, o sistema se desintegra e qualquer coisa diferente aparece em seu lugar.
Assim, a dinâmica pela qual a universidade se realiza é análoga à dinâmica pela
qual se realiza um sistema cultural: é um caso da mesma espécie. Não há contradição
imaginarmos que a universidade, enquanto sistema, possa conter sub-sistemas ou estar
contida em um sistema mais amplo como o sistema federal de educação superior, ou
mesmo o sistema sócio-cultural do país.
Quais são, então, as conversações típicas, vividas pelos membros de uma
universidade? Acreditamos que elas sejam, fundamentalmente, conversações acadêmicocientíficas.
Por conversações, assim como está definido por Maturana (1997a), entendemos
as coordenações de coordenações condutuais consensuais que implicam tanto a reflexão
quanto a ação. Como qualitativo acadêmico entendemos as relações dialógica e dialética
entre mestres e estudantes (Freire, 1998) que estão presente desde os primórdios da
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instituição. Como qualitativo científico fazemos referência ao processo sistemático
implementado pelos membros da instituição com vistas a conceber, sistematizar e resolver
as questões magnas de uma deteterminda época e não, necessariamente, à utilização do
método científico, tal como ele é definido a partir da modernidade com Bacon e Decartes.
Estas conversações acadêmico-científicas se fundam na liberdade e responsabilidade
individual e coletiva, com vistas o empreendimento comum que é a formação da juventude,
tanto no que concerne ao desenvolvimento do pensamento crítico, como no estímulo da sua
criatividade nas ciências, nas artes e no humanismo. A realização deste empreendimento, na
universidade, se faz pela indissociabilidade das atividades de produção, transmissão e
socialização do conhecimento (pesquisa/ensino/extensão).
É certo que outras redes de conversações também estão presentes no interior das
universidades como aquelas relativas às relações de trabalho, de mando e obediência, ou de
disputa de poder. No entanto, estas conversações não são específicas nem exclusivas ao
modus operandi da universidade. Elas acontecem normalmente em outros espaços
societários.
Ainda que não seja o objetivo principal deste ensaio fazer uma discussão exaustiva
das distintas concepções de universidade ou do que seja a universidade, afirmar que ela é,
essencialmente, uma rede de conversações acadêmico-científicas nos obriga a justificar
tal escolha face a outras definições possíveis. Procuraremos enunciar algumas destas
concepções de universidade a partir de seu uso mais corriqueiro, para então ressaltar
aquelas mais densas, de cunho educacional, político e filosófico.
No seu uso mais comum, a universidade é entendida como: (1) instituição de ensino
superior que compreende um conjunto de faculdades ou escolas para a especialização
profissional e científica, e tem por função precípua garantir a conservação e o progresso
nos diversos ramos do conhecimento, pelo ensino e pela pesquisa ; (2) edificação ou o
conjunto de edificações onde funciona essa instituição; (3) o pessoal docente, discente e
administrativo dessa instituição; (4) instituição com poder para auferir graus e diplomas de
nível superior.
Um conceito mais denso define a universidade como um centro de investigação e
de produção de conhecimento, bem como de educação e de formação de educadores; é um
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centro de formação de cientistas e investigadores, bem como o local que possibilita a
formação para o exercício das diversas profissões existentes na sociedade; é, igualmente,
um espaço de recolhimento da experiência cultural e de transmissão da cultura às novas
gerações (Fontoura, 1999, p.108).
Para o Grupo de Trabalho designado pelo Presidente da República e encarregado
de estudar a reforma da universidade brasileira, em 1968, a universidade foi definida como
o lugar onde a cultura de um povo e de uma época tende a atingir a plenitude de sua
autoconsciência. Assim, é uma de suas finalidades essenciais promover a integração do
homem em sua circunstância histórica, proporcionando-lhe as categorias necessárias à
compreensão e à crítica de seu processo cultural. É a etapa em que a universidade
transcende o momento da instrumentalidade para firmar-se em sua gratuidade criadora e
assumir o papel de liderança espiritual. Esta passagem foi extraída da obra intitulada
Universidade Reformanda, de Luiz Antônio Cunha (1988) na qual o autor contextualiza os
processos sociais, políticos e econômicos que resultaram na Lei N
o
5.540, da reforma
universitária de 1968.
Na concepção de Cunha (1988), a universidade pode ser entendida como uma
aparelho de hegemonia, que tem sua especificidade na formação de intelectuais
tradicionais e de intelectuais orgânicos da burguesia. É assim, pela própria luta hegemônica
que se desenvolve no seio da universidade, que o referido autor explica as diversas crises
de identidade desta instituição secular (Cunha, 1988). Esta concepção é de certa maneira
compartilhada por Chauí (1993), quando afirma que, querendo ou não, os membros da
universidade são intelectuais orgânicos da classe dominante, que têm como função
reproduzir a sociedade capitalista. Esta concepção de universidade foi explicitada, en
passant, pela autora, pois a essência do seu ensaio foi propor a existência, na universidade,
de duas vocações - uma acadêmica e outra política, e mostrar como estas duas vocações
têm sido articulada no seio da universidade. Concordamos que haja uma ação política
inerente à vida universitária, no entanto, acreditamos que a vocação política assim como as
normas éticas de conduta da universidade são decorrentes das conversações acadêmicocientificas,
das recursões na linguagem, das distinções de distinções que realizamos
quotidianamente em nosso fazer universitário.
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Embora todas as concepções descritas acima possam, isoladamente ou de forma
complementar, retratar a instituição universidade em suas dimensões funcional,
epistemológica, educacional, filosófica e política, nenhuma delas apresenta, em sua
definição, um mecanismo gerativo que, posto a operar, produziria a fenomenologia que
nós, enquanto observadores, distinguimos como característica da universidade. Portanto,
optamos por um delineamento diferente propondo um mecanismo gerativo – uma rede de
conversações acadêmico-científicas, que, embora aparentemente simples, é capaz de
engendrar a fenomenologia universitária, na totalidade de suas dimensões. Supomos que
só assim seja possível explicar o sistema universitário, já que entendemos por explicação
toda proposição que descreve um mecanismo que, posto a operar, gera o fenômeno a ser
explicado.
Embora alguns interlocutores governamentais – e muitos de nós mesmos – não se
dêem conta da importância das conversações acadêmico-científicas que se entrelaçam nas
atividades de ensino, pesquisa e extensão, argumentaremos neste ensaio que estas três
atividades são as condições sine qua non de nossa existência, da existência da universidade
enquanto sistema autônomo. Basearemos isto no fato de que estas mesmas atividades
podem ser praticadas, isoladamente, por uma diversidade de instituições e/ou corporações
empresariais existentes no seio da sociedade.
Assim, com relação à produção de conhecimento, há muito tempo diversas
corporações empresariais ditas estratégicas deixaram a exclusiva geração de produtos para
investirem em uma matriz de conhecimento. Estas corporações hoje possuem, dentro de si
próprias, a infra-estrutura de pesquisa, abertas e direcionadas. São empresas especializadas
não só na aplicação de conhecimentos, mas também no esforço de geração destes
conhecimentos (Dreifuss, 1999).
Com relação ao ensino, da mesma maneira, ele pode ser praticado por instituições
isoladas (escolas, faculdades) ou mesmo ser acessado, individualmente, através de um
processo auto-didático, ou através de uma vinculação a uma instituição estrangeira, ambos
ancorados no campo daquilo que se denomina complexo facilitador da
teleinfocomputrônica (Dreifuss). Isto porque tanto a produção quanto a transmissão do
conhecimento têm se dado num espaço novo, onde as fronteiras geográficas, temporais e
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culturais foram rompidas. Este novo espaço/tempo é este das telas e teclados de
computadores, suas bibliotecas e salas de conversação virtual, produzindo e intercambiando
informações e conhecimento a velocidades vertiginosas. Espaço este que pode estar dentro
ou fora das universidades.
Com relação à extensão, esta atividade já é compartilhada por várias instituições há
muito tempo. Algumas destas surgiram bem recentemente, como as Organizações Não
Governamentais (ONGs). É muito ilustrativo para o nosso debate comparar a performance
das universidades públicas face às ONGs no que se refere ao número de projetos aprovados
pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). A relação dos projetos aprovados por
este Fundo no período de 1990 a 1998 e os respectivos quantitativos estão disponibilizados
no Relatório do Ministério do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e da Amazônia Legal de
1998. Constata-se neste Relatório que, dos recursos liberados pelo FNMA, as ONGs foram
contempladas com mais de 11 milhões de dólares (40% do total liberado) enquanto as
universidades públicas (incluindo as federais e as estaduais) foram contempladas com cerca
de 2 milhões e setecentos mil dólares (10% do total liberado). O restante (50%) foi liberado
para projetos advindos de institutos isolados de pesquisa, órgãos públicos, sindicatos,
museus, prefeituras, universidades privadas, fundações e outros. Estes números são
reveladores para nossa discussão sobre os desafios e as oportunidades da universidade
pública frente ao novo milênio. O que estaria acontecendo? As universidades públicas não
se interessariam por este tipo de projeto? As ONGs seriam mais agressivas, formulando
melhores projetos do que as universidades? As ONGs possuiriam uma maior flexibilidade
para a aplicação dos recursos e por isso seriam mais eficientes? Ou seria simplesmente uma
questão de marketing ? Não temos ainda a resposta para este fato. É importante, no entanto,
discutir mais profundamente esta questão dentro das universidades e com nossos
interlocutores governamentais.
Os três parágrafos acima, tomados em conjunto, suscitam uma questão: se várias
instituições praticam isoladamente as mesmas atividades da Universidade, porque esta
última deve ser mantida?
A universidade, enquanto sub-sistema do sistema social do país, reflete o modo geral
das relações sociais, contribuindo decisivamente para a reprodução desse modo,
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legitimando e sendo legitimada pela sua importante função educativa, que se nutre das
atividades de produção, transmissão e socialização do conhecimento. Entretanto, as redes de
conversações existentes na universidade nem sempre legitimam ou reproduzem aquelas
existentes na sociedade e aí a universidade se reveste, ou passa a ser, potencialmente, um
foco original de mudanças estruturais da sociedade. Eis aqui a sua chamada vocação
política decorrente de seu mecanismo gerativo: suas conversações acadêmico-científicas.
Afirmar a importância, para a universidade, da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão, não tem nada de novo, pois esta afirmação já está presente nos textos, na lei e faz
parte do senso comum. O que queremos ressaltar é que a realização plena destas três
atividades gera um sinergismo, uma potencialização de competências, que se traduzem nos
domínios consensuais de conduta, favorecendo assim a reflexão, a criação de novos
problemas e a atitude crítica próprias do fazer universitário. Acreditamos que esse
funcionamento em rede garante uma eficiência que não pode ser reduzida aos parâmetros da
lógica do mercado. É essa especificidade da eficiência universitária que justifica todo nosso
esforço em preservar isso que se apresenta como a sua condição de possibilidade: sua
autonomia.
O que significa para o pesquisador estar imediatamente comprometido com a
formação do aluno e com os anseios da comunidade? Que efeitos nos modos de pensar e
produzir conhecimento advêm desse entrelaçamento? Por outro lado, devemos nos
perguntar também acerca da forma particular como o aluno experimenta sua formação em
conexão com os problemas da pesquisa e da necessidade de comunicação da universidade
com a sociedade. Finalmente, não é menos importante a experiência da sociedade que,
enquanto realidade extra-universitária, se sente convocada a participar da dinâmica
universitária como um dos seus interlocutores privilegiados. O que queremos dizer é que a
universidade como uma organização autônoma constitui os elementos que participam de
sua rede de conversações (pesquisador, aluno, cidadão), permitindo a geração de produtos
que se singularizam na rede (modo de produzir conhecimento, modo de produzir formação,
modo de produzir integração do extra-universitário na universidade).
Assim, somente à guisa de exemplo, consideremos o potencial de uma universidade
do porte da Universidade Federal Fluminense ou da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Elas possuem em seus quadros, cada uma, cerca de 2.500 professores, responsáveis por,
pelo menos, 3000 disciplinas. Possuem entre 4 e 5 000 servidores técnico administrativos e
cerca de 25.000 alunos, distribuídos em todos os níveis de ensino. Além do ensino de
graduação (42 a 47 Cursos) e pós-graduação stricto senso (45 a 83), estas universidades
mantêm atividades de pesquisa (1000 a 3000 projetos em andamento) e de extensão (cerca
de 1000 projetos anuais), em uma grande diversidade de áreas. Em algumas situações elas
chegam mesmo a substituir o poder público, como na área da saúde, através de seus
respectivos hospitais universitários (Catálogos da UFF e da UFMG,1998; Santos, T. A M,
1998 ).
Agregue-se a esta diversidade numérica a pluralidade oriunda das histórias de vida de
seus membros, considerando gêneros, vínculos étnicos, classe social, idade, locais de
nascimento, instituições de aquisição de formação acadêmica, crenças, concepções de
mundo, participação política. Esta diversidade é ainda ampliada pelo princípio da
liberdade acadêmica. Surgem, assim, distintos métodos, técnicas, estilos, concepções,
valores, interesses, experiências, vivências, tudo afetando o modo de pensar e de ensinar,
de imaginar criativamente a própria universidade: sua estrutura, suas relações, sua
administração e sua existência (Santos, T. A M, 1998)
Um sistema assim definido, organizado como uma rede de conversação autônoma,
possui propriedades emergentes, suprassomativas, advindas dos nós conversacionais entre
os membros que a integram. Propriedades emergentes, que não podem ser vistas, apreciadas
ou reduzidas a nenhum de seus membros ou a nenhuma de suas partes, que só se
manifestam em rede (Varela, 1979). Tendo em vista que estas redes de conversações são
multi-dimensionais e, portanto, não estão enclausuradas em disciplinas, o potencial de
diversidade aumenta extraordinariamente, podendo sempre gerar novas abordagens, novas
formações profissionais, novas intervenções inter e transdisciplinares e, sobretudo, novos
sujeitos históricos. A novidade que gostaríamos de ressaltar, portanto, é a novidade de criar
novidade. A competência de produzir competência. A consciência de gerar consciência.
Embora tenhamos afirmado que a universidade, enquanto espaço de produção de
conhecimento (pesquisa), de formação (ensino) e de integração com a comunidade
(extensão), não pode existir senão como uma experiência da liberdade, a qual tem na
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autonomia o seu pilar de sustentação, não queremos com isso pensar a universidade como
uma realidade alienada da sociedade que se apresenta como sua circunstância. De fato,
entendemos a universidade como uma dinâmica de conversações acadêmico-científicas
recursivas, que se manteve invariante desde os primórdios da instituição e que, portanto,
preenche as condições mínimas para uma definição de sua organização. Há de se fazer uma
ressalva e um alerta para não se confundir invariância organizacional com a noção de
acabamento, de completude, seja ela técnica, funcional, filosófica, política e/ou cultural, da
instituição definitivamente instituída. Pois há uma dimensão dela que é força instituinte,
isto é, uma abertura para a novidade que deverá ser, necessariamente, reelaborada segundo
sua lógica interna e então absorvida. Esta capacidade de reelaboração do novo, numa
perspectiva histórica, se faz mediante pequenas modificações ou mesmo através de grandes
mudanças estruturais. Compreende-se, assim, porque afirmamos que uma mesma
organização pode ser efetivada por diferentes estruturas, sem que a mesma perca sua
organização. Se a organização mudar não estaremos mais falando de um mesmo sistema,
enquanto unidade de classe.
Nesta perspectiva, a universidade não se confunde em sua forma atual, com a sua
estrutura presente, com este lugar que ela agora ocupa. Podemos dizer, então, que ela
comporta um não-lugar (u-topos) através do qual se transforma. A dinâmica universitária
pressupõe o confronto da instituição universitária, fechada operacionalmente sobre si
mesma, e o ambiente cultural que nela se entrelaça como um acontecimento
problematizador, provocando desestabilizações na instituição (breakdowns, como diria
Varela). A cultura se produzindo para além dos limites da instituição, enquanto força do
fora, desequilibra a universidade em sua tendência à repetição do instituído. O consenso
que recusa a mudança, que se bate pela perpetuação dos valores, enfrenta a força opositora
da dissensão. Talvez seja realmente este o papel da universidade, estar constantemente em
busca do dissenso perdido, parafraseando José Luiz Fiori (1995). E a universidade ganha,
com isso, uma dinâmica de criação a partir da inclusão, em suas atividades, do que se
definia antes como fora da instituição. Assim ela se nutre do que lhe era até então estranho,
afirmando-se como processualidade instituinte e não só realidade instituída. Segundo René
Schérer, professor de filosofia da Universidade de Paris VIII, participante des événements
de mai 68, em Nanterre, e recentemente em visita ao Departamento de Psicologia da UFF,
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há uma função utópica da universidade que faz dela criadora de novos conteúdos e
renovadora de seus métodos e de seus modos de vida (Schérer, 1996). Quando tomamos
esta idéia de uma função utópica da universidade, estamos entendendo que a instituição
possui uma dinâmica que a mantém em constante processualidade, o que implica uma
abertura temporal para o novo, seu u-topos. O seu fechamento espacial ou estrutural – seu
topos – coexiste, portanto, com a sua abertura temporal, seu u-topos.
Sob a luz deste modelo explicativo, fica mais fácil entender como uma instituição
autônoma e perene como a universidade, vem modificando sua estrutura ao longo dos
séculos, em congruência com sua circunstância – a sociedade que a mantém.
Assim, cabe a nós, integrantes da comunidade universitária, buscarmos a melhor
formulação do problema da autonomia universitária, protegendo-nos das falsas discussões e
das soluções fáceis encontradas seja nos argumentos neo-liberais, seja nos compromissos
corporativistas.
Os desafios colocados para a universidade pública nesta virada de milênio podem
ser assim sistematizados e enumerados:
1) as corporações estratégicas, na medida em que estas deixaram a exclusiva geração
de produtos para investirem em uma matriz de conhecimento;
2) as universidades empresariais, na medida em que estas consideram o
conhecimento como um produto, algo possível de ser empacotado, vendido e
distribuído ao gosto do cliente;
3) a globalização do ensino, na medida em que este passa a ser considerado como
serviço (regulamentado pela OMC), passível de ser controlado pelas potências
hegemônicas e fora do controle do Estado;
4) a demanda crescente por mais vagas no ensino superior, já que a educação,
incluindo a universitária, se transformou no principal capital para o
desenvolvimento e uma exigência básica para cidadania plena;
5) o governo, quando este não se coloca como parceiro privilegiado da universidade,
instrumentalizando-a para ações de políticas governamentais, em benefício da
sociedade e;
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6) a própria comunidade, quando esta se mostra desinteressada, alheada, reduzindo a
universidade a uma simples prestadora de serviços, como um outro guichê ou
balcão de agência do Estado.
Tendo ressaltado os desafios colocados para a universidade pública pelos três
grandes processos em curso (mundialização, globalização e planetarização), anunciamos
algumas proposições para discussão pela comunidade universitária em geral, os
administradores e os agentes responsáveis pelas políticas públicas. Estas proposições
podem vir a se transformar em estratégias de resistência da universidade brasileira
possibilitando a transformação dos desafios em novas oportunidades. São elas:
1) Ampliação do debate acerca da autonomia universitária, envolvendo os
diferentes interlocutores (comunidade universitária, sociedade civil e governo) e
aceitando a complexidade do problema que transcende os campos jurídico,
econômico e administrativo;
2) Ampliação das redes de conversações acadêmico-científicas através da
colaboração e do intercâmbio efetivo entre as IFEs, seus integrantes e suas
diferentes áreas de conhecimento (integração inter e transdisciplinar),
constituindo e efetivando assim um verdadeiro sentido para o que se denomina
Sistema Federal de Ensino Superior;
3) Ampliação do acesso ao Ensino Superior, sem perda da qualidade, para uma
faixa mais ampla da juventude brasileira. Isto porque, na Era do Conhecimento,
quanto maior o grau de escolarização, incluindo a universitária, maior será o
nível de desenvolvimento do país, de satisfação societária e de exercício da
cidadania plena;
4) Construção de instrumentos de auto-avaliação compatíveis com a organização
autônoma da universidade, oferecendo, assim, subsídios para correções de rumo
que se fizerem necessários com vistas à melhoria da performance da Instituição
e de sua efetivação na sociedade que a mantém;
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5) Criação de canais de comunicação com a sociedade civil e governo que
permitam a manutenção de um diálogo mais estreito entre esses agentes e a
consolidação de um projeto nacional e público de produção de conhecimento,
formação profissional e socialização do saber universitário.
Bibliografia
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35º Capitalismo, uma História de Amor (Capitalism, a Love Story)
País: Estados Unidos da América
Ano: 2009
Realizador: Michael Moore
Esta história de amor é o retrato da crise do capitalismo a partir do seu próprio berço. De Michael Moore, também poderíamos incluir Sicko ou Bowling for Columbine, masCapitalismo corresponde ao zénite da evolução ideológica do realizador norte-americano, não acabasse o filme ao som da Internacional. Mas sobretudo, o documentário perfaz a lista pelos relatos dramáticos dos trabalhadores que pagam na pele o preço do amor dos EUA pelo capitalismo.
34º As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1940
Realizador: John Ford
O clássico de Steinbeck encontra uma justa homenagem nesta adaptação de John Ford.As Vinhas da Ira conta a história de uma família de camponeses que, expulsa pelos latifundiários das terras onde viviam e trabalhavam, é forçada a uma longa viagem rumo à Califórnia em busca de trabalho. Pelo caminho, encontram a fome e a discriminação, mas também a solidariedade, a consciência de classe e a dignidade.
33º Sambizanga
País: Angola
Ano: 1973
Realizador: Sarah Maldoror
Sambizanga arruma com o mito do “brando colonialismo português” numa clara e inequívoca afirmação da estética e cultura africanas. Domingos, militante do MPLA, é sequestrado pela PIDE e torturado durante vários dias. Entretanto, a sua família procura-o desesperadamente entre o desespero do povo angolano. Filmado no Congo com guerrilheiros do MPLA e do PAIGC na maioria dos papéis e baseado na obra de José Luandino Vieira, Sambizanga é um dos mais poderosos filmes anti-coloniais de todo o continente africano.
32º Clube da Luta (Fight Club)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1999
Realizador: David Fincher
Quando o capitalismo não nos mata de fome, mata-nos de aborrecimento. O Narrador, magnificamente interpretado por Edward Norton, consome-se entre catálogos IKEA e a voragem da rotina. Alienado do seu próprio trabalho, da sociedade e de si próprio, conhece Tyler Durden um perigoso maníaco que pretender explodir o mundo financeiro.
Muita tinta já correu sobre o Clube de Combate, que tal como o livro homónimo, já foi acusado de proto-fascista, sexista e niilista. Mas como dizia Saramago, todas as histórias se podem contar de outra maneira.
31º Doutor Fantastico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1964
Realizador: Stanley Kubrick
Poucas etiquetas políticas cabem na lapela de Kubrick mas Doutor Estranhoamor é em si mesmo, um manifesto político. Rodada no auge da guerra fria, quando a sombra de um holocausto nuclear pairava sobre as cabeças de toda a humanidade, esta sátira expõe ao ridículo a lógica anti-comunista da América do senador McCarthy. Curiosamente, 50 anos mais tarde, os EUA estão de novo no centro de uma escalada de provocações nucleares. A única diferença, é que ainda não acusaram os coreanos de querer envenenar o abastecimento de água dos EUA.
30º Machuca
País: Chile
Ano: 2004
Realizador: Andrés Wood
Chile, 1973. Dois rapazes são unidos pela amizade e separados pelas classes sociais. Este é um filme sobre a adolescência, com toda a esperança e violência que ela comporta e, por isso mesmo, a melhor lente sobre a História recente do Chile. MasMachuca é muito mais do que uma rara janela para a experiência socialista de Allende e uma crítica à podridão da burguesia que engendrou Pinochet. É por direito, um dos melhores filmes chilenos alguma vez produzidos.
29º Inside Job - A Verdade da Crise (Inside Job)
País: Estados Unidos da América
Ano: 2010
Realizador: Charles Ferguson
Inside Job - A Verdade da Crise, obra prima de Ferguson, é um documentário que todos deveríamos ver. Num momento em que os desejos e caprichos do Deus-Mercado são cada vez mais descritos como insondáveis e ininteligíveis pelos comuns mortais, este filme explica as origens da crise capitalista que hoje vivemos de uma forma brilhante. Ferguson entrevista os maiores responsáveis directos pela crise, encosta-os à parede e faz o nosso sangue ferver.
28º A Batalha do Chile (La Batalla de Chile)
País: Chile
Ano: 1978-1980
Realizador: Patricio Guzmán
A Batalha do Chile é justamente considerado o melhor documentário latino-americano de todos os tempos. Justamente. No total, são quatro horas e meia de História com H grande, centrada na luta dos trabalhadores, nas conquistas da sua revolução e na resistência ao fascismo. Mas nenhuma das três partes que compõem A Batalha do Chilesão filmes de arquivo: tudo foi filmado no momento e no local. O operador de câmara Jorge Müller Silva foi sequestrado pela polícia de Pinochet durante as filmagens e é um dos 3000 chilenos que continuam desaparecidos.
27º Norma Rae
País: Estados Unidos da América
Ano: 1979
Realizador: Martin Ritt
Tal como todos na sua família e nesta pequena cidade da Carolina do Norte, Norma Rae (uma impecável Sally Field) trabalha na fábrica de algodão. Recebe o salário mínimo e parece condenada a aceitar todas as condições que o patrão lhe impõe. Até que um dia, chega Reuben Warshowsky (Ron Leibman), um sindicalista decidido a organizar os trabalhadores da fábrica. Baseado em factos reais, Norma Rae é uma homenagem despretensiosa à operária americana como ela é e à luta que tem em comum com os trabalhadores do mundo.
26º Cinco Dias, Cinco Noites
País: Portugal
Ano: 1996
Realizador: José Fonseca e Costa
José Fonseca e Costa consagrou-se neste filme como um dos mais competentes realizadores portugueses. Cinco Dias, Cinco Noites é uma espantosa e fidedigna viagem ao Portugal dos anos 40. Conta a viagem de um preso político evadido que procura cruzar a fronteira com a ajuda de um intratável “passador”. A antipatia entre os dois homens dá lugar a uma bela amizade nesta excelente adaptação ao cinema do romance homónimo de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal.
25º O Fim de São Petersburgo (Конец Санкт-Петербурга)
País: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Ano: 1927
Realizador: Vsevolod Pudovkin
Um camponês desempregado chega a São Petersburgo à procura de trabalho. Sem querer, acaba por denunciar um velho amigo à polícia, que o envia para a frente de batalha da I Guerra Mundial. O Fim de São Petersburgo é poesia celuloide em estado puro, 80 minutos de beleza intensa e golpes poderosos. É o irmão gémeo do famosoOutubro de Eisenstein mas ao contrário deste, que se centra nas massas, Pudovkin dedica-se ao indivíduo e à sua importância na revolução, sem nunca no entanto o demitir da sociedade, da sua classe e do seu partido.
24º Edukators (Die Fetten Jahre sind Vorbe)
País: Alemanha e Áustria
Ano: 2004
Realizador: Hans Weingartner
Uma estudante universitária tem um pequeno acidente de carro. Até aqui tudo bem. Acontece que não tinha seguro. Menos bem. E a isto acresce que o tipo do carro da frente, não é nem mais nem menos que um dos maiores bilionários do país e que os danos provocados valem dezenas de milhares de euros. Condenada em tribunal a pagá-los por inteiro, a jovem é forçada a deixar os estudos e a aceitar empregos precários por salários de miséria. Mas quando não se tem nada, também não se tem nada a perder. Os Edukadores correspondem o terror dos capitalistas na mesma medida. Como? A) Entrar furtivamente nas mansões dos ricos B) Criar pirâmides com toda a mobília e alterar toda a configuração da casa. C) Deixar uma nota: “Os vossos dias de abastança acabaram”.
23º Os Santos Inocentes (Los Santos Inocentes)
País: Espanha
Ano: 1984
Realizador: Mario Camus
Ver Os Santos Inocentes é como entrar num museu cheio de Goyas. As cenas lúgubres, cinzentas e magistralmente bem compostas podem-nos fazer duvidar do século em que o filme tem lugar, mas esta família espanhola sobrevive sem água nem electricidade nos vizinhos anos 60. O arcaísmo do latifúndio como ele é: um sistema medieval onde os caprichos dos senhores valem mais que a vida dos camponese.; Mas até nesta enorme prisão a céu aberto que reduz mulheres e homens a cães de caça (literalmente), todas as criaturas têm um limite.
22º Queimada
País: Itália
Ano: 1969
Realizador: Gillo Pontecorvo
Um provocador inglês enviado à ilha fictícia de Queimada para incitar uma revolta de escravos contra o colonialismo português. Os ingleses servem-se dos sentimentos independentistas dos escravos para se apropriarem eles próprios do comércio do açúcar, mas a revolta dos escravos ganha pernas próprias e prova-se difícil de controlar. Marlon Brando é irrepreensível no papel de William Walker, um cínico mercenário inglês que compreende demasiado bem a lógica do lucro e a desumanidade do colonialismo para lhes ser indiferente.
21º Matewan
País: Estados Unidos da América
Ano: 1987
Realizador: John Sayles
Este filme é uma refrescante surpresa de Hollywood, que com um elenco salpicado de estrelas (Chris Cooper, James Earl Jones, Mary McDonnell, etc.) e numa linguagem típica dos blockbusters, narra a Batalha de Matewan, na Virgína Ocidental, com acuidade histórica e destemido comprometimento político. O argumento centra-se na chegada de Joe Kenehan, sindicalista e comunista à pequena comunidade mineira de Matewan, onde se dará uma batalha de classes pela dignidade contra o racismo, o capitalismo e a exploração do homem pelo homem.
20º Também a Chuva (También la Lluvia)
País: Espanha, México, Bolívia e França
Ano: 2010
Realizador: Icíar Bollaín
Um dos filmes mais inteligentes dos últimos anos, cheio de subtilezas e resultado da colaboração de pesos pesados da sétima arte como o guionista Paul Laverty e os actores Gael García Bernal e Luis Tosar. Com apurada sensibilidade, Icíar Bollaín apresenta-nos uma equipa de rodagem espanhola que ruma à Bolívia para, ao mais baixo preço, filmar um documentário sobre a chegada de Cristóvão Colombo à América. Paulatinamente, o guião do documentário, que narra a história do genocídio e resistência dos indígenas, inspira e reflecte uma luta de vida ou morte contra a privatização da água, em que os índigenas contratados como extras se decidem a ser, de uma vez por todas, protagonistas da sua própria História. Uma bela história, sobre um povo ajoelhado que aprende a caminhar.
19º Os Diários de Motocicleta (Diarios de motocicleta)
País: Argentina, Chile, EUA, Peru, França. Alemanha e Reino Unido
Ano: 1969
Realizador: Walter Salles
Baseado nos diários do Guerilheiro Heroico, este filme biográfico consegue a proeza rara de contar a travessia trans-americana do jovem Ernesto de acordo com a máxima do mesmo: duramente, mas sem perder a ternura. Produção internacional de uma rara beleza, Os Diários de Motocicleta mostram uma América explorada e ajoelhada, mas igualmente o profundo amor dos comunistas à humanidade, ao ponto de morrer por ela e também de nos fazer chorar.
18º A Greve (Стачка)
País: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Ano: 1925
Realizador: Sergei M. Eisenstein
A primeira longa-metragem de Eisenstein faz os filmes mudos coevos parecerem anémicos. A Greve é uma obra de arte tão original como arriscada, que define já a finura de Eisenstein e, por corolário lógico, a genética do cinema moderno. Ao contrário de muitos outros filmes mudos da época, os actores não precisam de exagerar as expressões faciais para compensar com histrionismo a incapacidade de falar. Eisentein consegue tudo por todos os meios. Através de colagens, ângulos de câmara loucos, rápidas sequências entrecortadas e efeitos especiais, ficamos a conhecer a miséria dos operários russos, as suas reivindicações, a sua corajosa luta e, por fim, a sua brutal supressão.
17º A Melhor Juventude (La meglio gioventù)
País: Itália
Ano: 2003
Realizador: Marco Tullio Giordana
Seis horas de filme não é brincadeira. Mas em A Melhor Juventude não há nem um minuto em excesso e o resultado final prima pelo brilhante exercício de economia. É que Giordanna está a contar-nos a história de um grupo de amigos ao longo de 50 anos e qualquer grupo de amigos a sério tem muito que contar. As actuações são brilhantes e o argumento é tocante. Mas o que mais sobressai, é a honestidade com que se aborda a história recente de Itália, das lutas dos estudantes universitários às Brigadas Vermelhas até à diluição dos ideais socialistas. Um filme que todos deveriam conhecer.
16º Che
País: Espanha, França, EUA
Ano: 2008
Realizador: Steven Soderbergh
O Che dizia que numa revolução, se for verdadeira, ou se triunfa ou se morre. As duas partes deste filme revelam a crueza da guerra revolucionária, para lá de quaisquer fantasias esquerdistas. Benicio del Toro converte-se em Guevara com tanta arte que nada nas suas palavras, nos seus trejeitos ou mesmo na sua aparência física o denuncia. Che é uma sublime e original lição de humanidade, que salpica com generosidade e comunismo os mais ínfimos detalhes de uma guerra tão sangrenta e brutal como cada vez mais necessária.
15º Estado de Sítio (État de Siège)
País: França e Itália
Ano: 1972
Realizador: Costa-Gavras
Costa-Gavras foi um dos realizadores mais politicamente comprometidos do século passado. E também um dos melhores. Em Estado de Sítio, o génio grego explora as brutais consequências do imperialismo norte-americano nos regimes sul-americanos. Com Yves Montand e Renato Salvatori nos papéis principais, o filme segue o grupo de guerrilha urbana durante o sequestro e interrogatório de um dirigente da CIA. Baseado no sequestro de Dan Mitrioni pelos Tupamaros uruguaios, Estado de Sítio foi apedrejado pelos críticos de cinema dos EUA que o acusaram de propagandear mentiras sobre o envolvimento dos EUA na promoção de ditaduras na América do Sul. Um ano mais tarde, a CIA oferecia o Chile para abate a Pinochet.
14º Brisa de Mudança (The Wind that Shakes the Barley)
País: Irlanda, Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha, França, Bélgica e Suíça
Ano: 2006
Realizador: Ken Loach
Da Irlanda à Colômbia, passando pelo País Basco ou pelo Vietname, há um sentimento que predispõe povos pacíficos a se levantarem em armas para matarem os seus irmãos. É do antiquíssimo sentimento de humilhação que trata este filme. É pesado, triste e duro de se ver, mas indispensável para quem pretender compreender a luta dos irlandeses pela liberdade. Com trabalhos de fotografia e direcção de primeira classe, Ken Loach traz-nos aos anos vinte do século XX irlandês, para conhecer o trágico percurso de dois irmãos no IRA.
13º Apocalyspe Now
País: Estados Unidos da América
Ano: 1979
Realizador: Francis Ford Coppola
Um dos clássicos do cinema americano e provavelmente a melhor adaptação ao cinema de qualquer livro. Baseado no Coração das Trevas de Joseph Conrad, Apocalypse Now substitui o colonialismo belga no Congo pelo imperialismo norte-americano no Vietname, denunciando a monstruosidade da guerra e a desumanização dos soldados. Fotografado com a mestria de Coppola, Apocalypse Now é uma poderosa metáfora sobre a natureza humana e o mais competente dos ensaios cinematográficos sobre a guerra.
12º Outubro (Октябрь (Десять дней, которые потрясли мир))
País: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Ano: 1927
Realizador: Sergei M. Eisenstein
Estreado no quadro das comemorações do 10º aniversário da Revolução de Outubro, o filme Outubro é uma revolução em si próprio: a abordagem à teoria da montagem de Eisenstein desconstrói a formalidade narrativa do cinema convencional e introduz a edição e a pós-produção como meios de alcançar a dialética. Esteticamente tão arrojador como o período histórico que retrata, Outubro definiu para sempre o imaginário mundial da revolução socialista russa.
11º Eu Sou Cuba (Soy Cuba)
País: Cuba e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Ano: 1964
Realizador: Mikhail Kalatozov
Eu sou Cuba é o impensável resultado da colaboração entre um poeta e um realizador soviéticos, e um escritor cubano, que contam a História de Cuba na primeira pessoa. Uma nação arrastada pelos rodapés de historiografias estrangeiras levanta-se do chão e consegue a verdadeira independência. Eu Sou Cuba é inacreditável, uma viagem sideral filmada num preto e branco belissimamente fotografado. Os ângulos de câmara são acrobáticos, os cortes são psicadélicos e a música é autenticamente cubana.
10º Reds
País: Estados Unidos da América
Ano: 1981
Realizador: Warren Beatty
Esta mega-produção de Hollywood entra no décimo lugar da lista pela porta grande da sétima arte. Não sei o que neste filme é mais apaixonante: as inspiradoras actuações de Jack Nicholson, Diane Keaton, Maureen Stapleton e, sobretudo Warren Beatty no papel de John Reed (o jornalista americano que no calor da Revolução de Outubro escreveu “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”)? Ou o brilhante guião que nos transporta aos loucos anos 20, às eternas discussões e contradições da esquerda e ao mais relevante acontecimento histórico do século XX? Ou as adoráveis entrevistas a uns improváveis e brilhantes velhinhos americanos?
9º Às Segundas ao Sol (Los Lunes al Sol)
País: Espanha
Ano: 2002
Realizador: Fernando León de Aranoa
Um monumento à classe operária como ela é e não como nós gostaríamos que ela fosse. A história dos operários navais de Vigo, na Galiza, a quem o capitalismo roubou o trabalho, a vida e a esperança mas nunca a dignidade. Um filme que só não fará chorar os ricos e os corações empedernidos que nos fala das pequenas misérias e prazeres do povo trabalhador: a operária de peixaria que não se consegue libertar do fedor; o imigrante de leste que conta aos amigos que na URSS era cosmonauta; o desempregado de meia-idade que se recusa a aceitar que ninguém lhe dá trabalho por ser velho demais; o antigo operário que lutou, fez greves e manifestações que perdeu e voltaria a fazer tudo outra vez; o cínico que traiu a sua classe por uns trocos. O retrato perfeito de quem sobrevive num eterno domingo.
8º Tempos Modernos (Modern Times)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1936
Realizador: Charlie Chaplin
A arte de Charlie Chaplin é agarrar um argumento sem nada de especial e num conjunto de cenas cómicas do mais simples que há e criar uma das obras primas do cinema: uma peça de arte de valor cinematográfico, artístico e histórico transcendente, que ressoa através do tempo e chega aos nossos com a mesma autoridade. O protagonista é um trabalhador que apenas quer levar uma vida honesta e ganhar para o pão, mas por alguma razão, tudo lhe corre mal e essa razão chama-se capitalismo.
7º Horizontes de Glória (Paths of Glory)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1957
Realizador: Stanley Kubrick
Horizontes de Glória é talvez a obra cinematográfica que melhor personifica os ideias anti-belicistas da esquerda. A película leva-nos às trincheiras fratricidas da I Guerra Mundial, onde seres humanos são jogados contra a lógica no campo de batalha pelos burocratas da morte. Quando um batalhão se recusa a avançar para uma morte certa, quatro soldados são escolhidos para ser fuzilados como bodes-expiatórios, pondo em marcha um debate marcante sobre o nacionalismo burguês, a autoridade e o valor da vida.
6º O Ódio (La Haine)
País: França
Ano: 1995
Realizador: Mathieu Kassovitz
O Ódio é um murro no estômago. Nesta Paris já não mora Amélie Poulain. Nesta França não há gente bonita a sonhar acordada entre os cafés dos anos sessenta, os jardins renascentistas e os apartamentos Haussmann. O Ódio é uma viagem com os excluídos da sociedade francesa, os que cheiram mal e não gostavam da escola. Não paternaliza nem idealiza, limita-se a seguir e a escutar os embaixadores da racaille, que cometem pequenos crimes, enfrentam os neonazis e o desprezo da sociedade, mantêm alguns dos diálogos mais autênticos do cinema francês e, contra todas as expectativas, sonham.
5º Harlan County, USA
País: Estados Unidos da América
Ano: 1976
Realizador: Barbara Kopple
Como cantam os mineiros no filme, “Dizem que em Harlan County / por lá não há neutrais. / Ou és um sindicalista / ou um arruaceiro para o J. H. Blair. / De que lado estás, rapaz? / De que lado estás?” Este documentário está para os anos setenta comoOutubro de Eisenstein está para os anos 20: é um autentico manual de organização de greves e um indescritível testemunho da coragem dos mineiros americanos. Os protagonistas desta luta, especialmente as mulheres, são tão genuínos que reduzem as personagens de qualquer obra de ficção a meras caricaturas. Nunca ouvi falar de quem terminasse o filme com os olhos secos.
4º O Sal da Terra (The Salt of the Earth)
País: Estados Unidos da América
Ano: 1954
Realizador: Herbert J. Biberman
“Como posso começar a minha história que não tem começo? O meu nome é Esperanza, Esperanza Quintero. Sou a mulher de um mineiro. Esta é a nossa casa. A casa não é nossa. Mas as flores… as flores são nossas. Esta é a minha aldeia. Quando eu era uma criança, chamava-se São Marcos. Os “anglos” mudaram o nome para Zinc Town. Zinc Town, Novo México. As nossas raízes neste lugar são profundas. Mais profundas que os pinheiros, mais profundas que a mina”. Assim começa O Sal da Terra, que esteve banido nos Estados Unidos até aos anos 60. Todos os envolvidos na sua produção foram adicionados à infame lista negra do cinema norte-americano; a protagonista foi deportada para o México e o argumentista passou mais de um ano na prisão. Porquê? Porque este filme é perigoso por ser simultaneamente tão belo e tão corajoso. A luta dos mineiros norte-americanos vista de uma perspectiva de classe em que as mulheres e os imigrantes são líderes e iguais.
3º A Batalha de Argel (La battaglia di Algeri)
País: Argélia e Itália
Ano: 1966
Realizador: Gillo Pontecorvo
A Batalha de Argel, banido em dezenas de países e censurado em quase todos. A magnum opus de Pontecorvo não se comociona com o falso humanismo burguês nem cede à vertigem infanto-militarista do esquerdismo. Num corte de direcção geniais e com actores tão hábeis que muitos espectadores acreditaram tratar-se de um documentário, mergulhamos numa das mais sangrentas revoluções da História e somos forçados a colocarmo-nos de um dos lados desta brutal barricada, opção que os oprimidos nunca tiveram. Nenhuma outra narrativa cinematográfica descreve de forma tão vívida e detalhada a revolta dos povos colonizados e as questões que A Batalha de Argel coloca são tão válidas para a Argélia dos anos 50 como para o Afeganistão dos nossos dias.
2º O Encouraçado de Potemkin (Броненосец «Потёмкин»)
País: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
Ano: 1925
Realizador: Sergei M. Eisenstein
Aos 88 anos, este filme mudo ainda não perdeu o pio. Pelo contrário, O Couraçado de Potemkin é uma lufada de frescura e ousadia no sapal por onde hoje paira o cinema comercial. A obra-prima de Eisenstein, não é nem mais nem menos que a obra fundadora do cinema moderno, tão bela como inspiradora, tão transgressora formal e esteticamente como revolucionária politicamente. Eisenstein domina a celuloide como Miguel Ângelo domina a pedra ou Matisse domina a cor e consegue levar-nos a cada emoção, a cada surpresa, a cada momento de indignação e solidariedade com tanta subtileza que só nos apercebemos do caminho percorrido chegados ao fim da jornada. Esta é a história verídica dos marinheiros que se recusaram a comer carne podre, porque eram gente. Esta é a história da luta de vida ou morte que se seguiu pela dignidade dos trabalhadores de Odessa, porque também eram gente. Esta é a história do massacre policial que se seguiu e das vozes que não puderam estrangular, porque, como dizia Adriano Correia de Oliveira, ninguém pode vencer um povo que resiste.
1º 1900 (Novecento)
País: Itália, França e Alemanha Ocidental
Ano: 1976
Realizador: Bernardo Bertolucci
1900 é inigualável. Os campos da Emília-Romanha são a tela para a metáfora acabada do que foi o século XX, onde dois rapazes e duas classes sociais crescem e aprendem, separados por interesses inconciliáveis. Cada fotografia deste filme é um quadro repleto de beleza; todas as actuações, de Gérard Depardieu a Robert de Niro, são brilhantes; a música, de Ennio Morricone, é sublime. 1900 fala sobre a génese do fascismo, a vida dos que trabalham e a luta pelo socialismo na linguagem comum de toda a humanidade: o amor, o ódio, a compaixão e a solidariedade.